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Veja as 3 grandes tendências da economia global pós COVID-19, conforme o expert André Cunha

Atualizado: 26 de mai. de 2020

Saiba quais são as tendências para o mundo pós COVID-19: desglobalização da produção, novas lideranças e novos padrões de consumo.


Você já parou pra pensar que a vida não vai voltar ao normal depois da quarentena? Que nossa rotina não vai ser a mesma, muito menos a economia brasileira e os negócios internacionais? Sabemos que, nesse momento de crise, surgem muitas dúvidas sobre como gerir sua empresa, decidir entre importar uma peça ou segurar o orçamento, ou mesmo investir no mercado externo.


Nesse post, buscamos te ajudar a entender como vai ficar o mundo após a pandemia de COVID-19. Nosso convidado é o economista André Cunha, pós-doutorado pela Universidade de Cambridge e professor de Economia e Relações Internacionais na Universidade Federal do Rio Grande do Sul.


Você vai encontrar esse artigo dividido em três grandes tendências para o mundo pós pandemia:

  1. Desglobalização da produção e isolamento dos países

  2. Surgimento de novas lideranças. Os EUA vão ficar pra trás?

  3. Novos padrões de consumo e disrupção tecnológica


1. Desglobalização da produção e isolamento dos países

Entre o final dos anos 1970 e o começo dos anos 2000, houve uma expansão do comércio e dos fluxos de capitais entre os países. Tal ritmo excedia o crescimento da renda, fazendo com que indicadores como exportações/PIB ou Investimento Direto/PIB tenham mais do que dobrado. Porém, desde 2008 esta tendência perdeu força, o que levou muitos analistas a falarem em “desglobalização”.


Antes da pandemia da COVID-19, o ambiente da economia global já vinha sendo afetado negativamente pelas tensões comerciais entre Estados Unidos e China, bem como por fenômenos nacionalistas e populistas (Brexit etc.) Agora, há sinais de nova deterioração. É importante notar que a globalização prévia criou uma forte interdependência, que não é facilmente reversível.


Por exemplo, com a pandemia o mundo se deu conta de que a produção global de equipamentos e insumos médicos está muito concentrada na Ásia, particularmente na China. Isso tem dificultado o combate aos problemas sanitários, pois os países perderam capacidade de produzir estes bens estratégicos e a própria pandemia dificulta a logística do comércio internacional.

Não se reconstitui tal capacidade de produzir automaticamente ou por mera vontade política. Há que se ter tecnologia, infraestrutura, empresas, trabalhadores qualificados etc.

O Brasil exemplifica isso, estamos vivendo um processo intenso de desindustrialização há mais de trinta anos.


Perspectivas negativas para a economia em 2020 e 2021

Neste sentido, as perspectivas de curto prazo, para 2020 e 2021, apontam para uma economia global em recessão profunda e com retração importante dos fluxos de comércio. As projeções atuais, que ainda podem ser revisadas, sinalizam para variações negativas do produto global da ordem de -2% a -3%.


No caso do Brasil, as estimativas são ainda piores. Já a recuperação posterior vai depender das respostas nacionais e globais em termos de políticas econômicas. Quanto mais tímida for a ação dos Estados Nacionais e quanto maiores forem os conflitos comerciais, mais difícil será a recuperação pós-pandemia.

EUA e Europa estão dando as costas ao seu próprio projeto

Outro fator que contribui para o isolamento dos países é a desestruturação da ordem liberal ocidental. Em meio à guerra por respiradores, observa-se que a União Europeia está deixando para trás o ideal de solidariedade entre os Estados-membro. Por exemplo, no início de abril, alguns países fecharam as fronteiras internas e França e Alemanha limitaram as exportações de produtos médico-hospitalares. Chegou-se a falar em nacionalismos e soluções individuais para combater a pandemia no velho continente.


Reunião do Conselho Europeu sobre orçamentos comunitários e emissão de títulos de dívida da UE, que gerou muitas divergências


No momento, os EUA estão dando as costas ao seu próprio projeto, idealizado ainda durante a Segunda Guerra, de constituir e liderar uma ordem global aberta e multilateral. Antes mesmo da pandemia, os sinais neste sentido eram cada vez mais claros, com o repúdio a acordos e organismos internacionais.


Na governança do comércio, por exemplo, os estadunidenses estão criando dificuldades para a nomeação de representantes para o órgão responsável por mediar conflitos - a Organização Mundial do Comércio. Atualmente esta instância está simplesmente paralisada.



2. Surgimento de novas lideranças

É muito difícil avaliar se as tendências de “desglobalização” vão ganhar força com a pandemia ou se haverá um movimento no sentido oposto, de reforço dos mecanismos de solidariedade e de governança em bases multilaterais. Na minha perspectiva, a pandemia revela, com maior nitidez ainda, que os grandes problemas da humanidade não respeitam fronteiras. Para equacioná-los há que se promover intensa cooperação na esfera internacional.


Sentimento de frustração e de abandono das classes não proprietárias

Todavia, é importante compreender que a globalização econômica não veio acompanhada de uma “globalização política”. A economia se integrou mais no plano internacional, ao passo que a política e a cultura mantiveram suas bases locais. Esta dicotomia tem sido explorada por movimentos populistas e antiglobalistas, independentemente se originados na “direita” ou na “esquerda”.


Estes negam a ciência, a verdade objetiva e apelam para o sentimento de frustração e de abandono das classes não proprietárias, especialmente nos países de renda média e alta. O “outro”, o que vem de “fora” e nos invade, torna-se o bode expiatório dos problemas. Os órgãos multilaterais passam a ser vistos como fontes negativas de poder, ao invés de parceiros em potencial. Este sentimento de desamparo pode crescer com a crise econômica derivada da pandemia, o que fortaleceria líderes contrários à cooperação global.


Por outro lado, também é possível que cresça a consciência de interdependência. Somos todos humanos e compartilhamos do mesmo destino planetário. Se não agirmos coletivamente, novas epidemias, crises financeiras e, mais importante, os graves problemas derivados da mudança climática radical em curso, vão afetar as condições de vida de toda a humanidade.

As novas lideranças políticas, empresariais e sociais serão importantes para resgatar a racionalidade no debate público e a solidariedade na ação política local e global. Sem elas, os problemas atuais se multiplicarão.

A China tomará o lugar dos Estados Unidos?

Da mesma forma, em meio a esta crise, assim como nos anos que se seguiram à crise financeira de 2007-2009, fala-se muito no reordenamento político global. Mais especificamente, questiona-se se a China tomará o lugar dos Estados Unidos como principal polo de poder. Creio que este tema é extremamente importante e complexo. A nossa tendência natural é projetar visões e preconceitos contemporâneos tanto para a análise do passado, o que caracteriza um anacronismo histórico, quanto do futuro.


Assim, até aqui não parece haver dúvidas de que a China se reposicionou como um poder global importante. O gigante asiático deixou para trás o seu “século de humilhações” e já é a maior economia do mundo (quando se mede em paridade de poder de compra), o maior exportador e um importante ator que disputa a fronteira tecnológica e financeira. Ainda assim, creio ser precipitado falar em uma eminente hegemonia chinesa, enquanto uma extrapolação linear das tendências recentes.


Eu não tenho por hábito minimizar a vitalidade dos Estados Unidos. Este país segue sendo a potência militar com maior capacidade de projeção global de poder, assim como o país líder em termos tecnológicos e financeiros. É fato que a sua sociedade está muito dividida e seu sistema político perdeu o centro gravitacional em meio à crescente radicalização.

Ademais, o país parece abdicar do papel de liderança de uma determinada visão civilizatória do mundo.

Todavia, esta realidade pode se transformar com um eventual reordenamento político interno. A própria crise pode favorecer, se não no curto prazo, em um momento posterior, a emergência de outro tipo de liderança e de organização doméstica dos conflitos políticos. O futuro teima em ser incerto e quaisquer projeções determinísticas podem se revelar precipitadas.


A China pode até desejar maior protagonismo global e não o conseguir por força dos seus próprios limites e de resistências externas. Ou ainda, pode não desejar expandir-se muito para além do seu entorno regional. Pelo menos não em um horizonte temporal próximo. Objetivamente, a ascensão chinesa das últimas quatro décadas se deu dentro da ordem forjada sob a liderança dos Estados Unidos.

Em nenhum momento a China foi um ator antissistema. Ela lutou para entrar na OMC e não para destruir o comércio multilateral. Quem agora se volta contra a ordem liberal é o país que o concebeu, os Estados Unidos.


3. Mudanças de padrões de consumo - economia e sociedade

A reclusão doméstica forçada pode ajudar a acelerar algumas tendências prévias nos padrões de consumo, como o crescimento do E-commerce, a utilização do streaming, dentre outros. Imagino que isso seja um cenário bem provável. Áreas de fronteira na tecnologia também serão beneficiadas, como o uso da inteligência artificial, da digitalização e robotização.

Os mundos do trabalho e do consumo já iriam mudar. O que possivelmente acontecerá agora é a antecipação e a aceleração destes novos padrões. Será um processo mais disruptivo ainda.

Teremos o desafio de redesenhar as políticas públicas que regulam o trabalho, o consumo, que protegem os segmentos mais vulneráveis (idosos sem renda e jovens sem empregos ou trabalho). Temas como a introdução de mecanismos de renda universal não condicional estão sendo discutidos em veículos tradicionais e que representam a visão dos mercados financeiros e dos segmentos de alta renda, como o Financial Times e a The Economist. Creio que é outra tendência que veio para ficar, vale dizer, o redesenho das políticas públicas, tanto pelo lado do gasto público quanto, principalmente, da tributação e financiamento.


Substituição de meios de pagamento físicos por digitais

A logística do comércio internacional será afetada, com espaço para setores ligados ao comércio eletrônico. O sistema financeiro será ainda mais digital com a substituição de meios de pagamento físicos por digitais acontecendo de forma mais rápida.


A China acaba de anunciar o seu projeto de moeda digital estatal. Na prática, será a substituição definitiva do papel moeda. Isto já vem acontecendo há muito tempo. Porém, teremos um novo patamar e uma mudança simbólica importante, caso as moedas físicas desapareçam. As fintechs que já estão por aí podem ganhar mais espaço. Os bancos tradicionais serão forçados a se adaptar e oferecer serviços mais competitivos e acessíveis.

Interface do aplicativo da moeda digital chinesa, que vazou nas redes sociais do país



Oportunidade de redesenhar o capitalismo de uma forma socialmente menos agressiva

Além disso, segmentos como a indústria farmacêutica, de equipamentos médicos, higiene e limpeza, produção de bens e serviços para este consumidor que vai ficar mais em casa são exemplos de áreas com potencial de expansão. Assim como as novas tecnologias já mencionadas.


O mundo em que drones farão as entregas de pizza está mais próximo do que imaginávamos. O problema é o que fazer com o entregador de pizza. Não haverá empregos para todos. Vamos ter de reler o Keynes, tanto da Teoria Geral, quanto do “Futuro Econômico dos Nossos Netos”, bem como a “Grande Transformação”, do Polanyi, e perceber que esta crise é uma oportunidade de redesenhar o capitalismo de uma forma socialmente menos agressiva.


É possível compatibilizar a busca do lucro com a manutenção das liberdades individuais e a proteção social. Só que isso envolverá novas políticas e ampliação do acesso à educação, saúde e proteção social, de forma universal e pública. Sem isso, a quantidade de excluídos será maior do que a de consumidores. A reprodução normal da vida social estará ameaçada.


Sinais negativos para o futuro

Vivemos um momento em que os riscos e as oportunidades se multiplicam. No curto prazo vai ser muito duro. A economia vai sofrer muito no segundo semestre do ano, particularmente no Brasil, onde as coisas já não iam bem. A minha impressão é que aqui os problemas sanitários, econômicos e políticos serão mais graves ainda. Espero estar errado, mas todos os sinais são de que somos uma nau sem rumo.


Mais adiante teremos os dados para comparar o desempenho geral da nossa economia com a de outros países. Todos no mundo serão afetados, mas não com a mesma intensidade e a mesma duração.


Já podemos observar que o sofrimento derivado da pandemia e da crise econômica é menor quando há políticas organizadas, racionais, porque baseadas em preceito científicos, e lideranças comprometidas com o bem comum. E isto independe de orientação política. Governos conservadores, como o da Alemanha, ou mais à esquerda, como Portugal e Espanha, seguem este padrão. Outros ignoraram os alertas dos cientistas e minimizaram os riscos da pandemia.

Gosto sempre de lembrar que problemas não são de “esquerda” ou de “direita”, eles são simplesmente “problemas”.

O importante é que sejam solucionados. A pandemia é um problema grave. O aquecimento global é um problema mais grave ainda. Precisamos encará-los com seriedade e não com preconceitos ideológicos.


 

Autor convidado: André Cunha, Pós-doutorado pela Universidade de Cambridge e professor de Economia e Relações Internacionais na Universidade Federal do Rio Grande do Sul.



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